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terça-feira, 30 de outubro de 2012

Que sabem os que o veem tão somente como um louco? De aventuras quase nada; da história muito pouco; do mundo só conhecem o cinzento cotidiano...


II Cena


[Ama, Sobrinha, Padre , Barbeiro ( Quixote, aldeão) ]



Onde se conta as preocupações dos familiares e amigos do fidalgo, além de algumas atribulações sofridas pelo mesmo, ademais da censura da biblioteca.


Ama:
_ Senhorita! Faz três dias que o senhor seu tio não aparece! Ninguém da vizinhança sabe do seu paradeiro... nem os pastores, nem o cabreiro... Por Deus! E agora o que fazemos?

Sobrinha:
_ Eu também estou desesperada. A única coisa que me ocorreu foi chamar o padre que é seu grande amigo. (Ouve-se batidas na porta – elas se dão volta). Creio que chegou.

(Entra o padre secundado pelo barbeiro. As duas mulheres beijam respeitosamente a mão do padre e fazem uma mesura para o barbeiro. Este retribui da mesma forma)

Padre:
_ Para nos ajudar nesta ocasião tão preocupante, trouxe comigo a Dom Nicanor.

Ama:
_ ¡Por Deus! O que lhe parece senhor padre essa desgraça
do meu patrão? Pobre... faz três dias que não dá sinal de vida... estamos desesperadas...

Padre:
_ Procurem se acalmar... Primeiro me digam como isso aconteceu.

Sobrinha:
_ Só pode ser culpa desses malditos e endemoniados livros.

Barbeiro:
_ Que livros?

Sobrinha:
_ Sabe, Dom Nicanor, aquelas histórias de desventuras, de batalhas insanas e todas essas idiotices que acabaram levando o meu pobre tio a perder o juízo...

Ruidosamente entra o aldeão apoiando a Dom Quixote.


Aldeão:
_ Com licença, com licença...que eu trago a D. Alonso muito estropiado...

Quixote (com voz firme):
_ Alonso, não! Dom Quixote de La Mancha, Grande Cavaleiro Andante que por obra de um nigromante traiçoeiro, em sua primeira batalha desafortunado foi, porém manteve o pendor de sua grande e honorável figura e sem dúvida alguma haverá de ganhar a guerra.


(continua...)




segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Quijano envelhecendo em seu comum destino Quixote – o corpo ereto, a alma de menino... O heroico cavaleiro sempre em luta contra o mal.

 
 
A realidade de Quixote 

Que sabem os que o veem tão somente como um louco? 
De aventuras quase nada; da história muito pouco 
Do mundo só conhecem o cinzento cotidiano... 


Que sabem os que se riem da sua ingênua insensatez? 
Se envelhecem em seus leitos, invejando-lhe a altivez 
E morrem sem viver, que é o destino mais insano! 


Acaso há melhor sina do que ser nobre entre os nobres, 
Humilde entre os humildes, benfeitor dos pobres, 
Àqueles a quem jamais faltaste, destemido paladino? 


D. Quixote de La Mancha, que em sua heroica epopeia 
Ofertou todas as glórias à sua amada Dulcineia 
Sem buscar maior riqueza que o seu elmo de Mambrino. 

 

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Quijano entre seus livros, sonhando a aventura Quixote em seu cavalo, com lança e armadura (Que adormeça a realidade, o sonho é mais real)



I Ato


Transformação

Cena I

(Alonso Quijano, Sobrinha, Ama)



Onde se introduz o venerável Alonso Quijano e o seu fervor apaixonado pelos livros de cavalaria



Alonso sentado e lendo. Às vezes trava batalhas imaginárias. Parece visivelmente transtornado, alheio a tudo que o rodeia.
A ama entra. Traz uma bacia e uma vassoura nas mãos. Deixa a bacia em um canto e começa a limpar com a vassoura. Aproxima-se de Alonso, varre por baixo dos seus pés.... por baixo da mesa. Alonso não lhe dá a mínima importância.

Entra a sobrinha e a ama comenta:

Ama: _Senhorita, o que lhe parece o seu tio? Faz meses que está nessa loucura de ler e ler sem descanso!

Sobrinha:_ Tio! Tio! (Demonstrando desânimo)_ É inútil, Dona Mercedes. Não ouve ninguém. Está como que prisioneiro dessas histórias de cavaleiros, dragões, princesas, feiticeiros...

Ama:_ Por culpa desses malditos livros a fazenda está abandonada. Já faz tempo que comemos sempre a mesma coisa... por Deus, um homem tão inteligente! Malditos livros de Satanás... lhe fizeram perder o tino... Meu Deus, a comida vai queimar.

A ama e a sobrinha saem apressadamente. Aquela se esquece da vassoura.

Passam as horas. Já é de madrugada. Alonso se levanta, caminha até o baú, agarra uma espécie de colete, parecido a uma armadura, e o veste. Agarra a vassoura que brande como uma espada e usa a bacia como se fosse um escudo.

Alonso: _ Eu, Alonso Quijano, de agora em diante me chamarei Dom Quixote! E como convém a um grande Cavaleiro andante e aventureiro, matador de gigantes, defensor de viúvas e donzelas desamparadas, Protetor de todos os injustiçados, farei como o famoso Amadis de Gaula . Minha terra será o meu sobrenome. Serão imortalizadas em bronze as façanhas do grande Cavaleiro Andante Dom Quixote de la Mancha!

Sai Dom Quixote triunfalmente.



















quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Existe sim, já existia antes e existirá depois, porque como Cervantes também somos dois... por vezes Quixote, por vezes Quijano...


Isto aconteceu há mais de 400 anos, mas é como se acontecesse neste momento. Um fazendeiro chamado Alonso Quijano, já no final da sua vida, de tanto ler e ler romances de cavalaria começou a enlouquecer, e em seu delírio houve por bem se sagrar um cavaleiro andante, tal e qual aqueles heróis das suas histórias preferidas.
Bradou então, aos quatro ventos que o seu nome doravante seria Don Quixote de la Mancha e, embora já velho, agia como se jovem fosse. E tomado dessa loucura inquebrantável, saiu pelo mundo acompanhado por seu fiel escudeiro Sancho Pança, enfrentando toda sorte de batalhas... imaginárias ou não.
Eis um velho com alma de menino, para todo o sempre cavalgando em nossas mentes.
Eis em Don Quixote o sonho vencendo a realidade em cada um de nós... mas isso não existe. Não existe! Ou será que existe? Existe ou não existe?




O sonho de Cervantes


Existe, sim! Existirá depois! E já existia antes! 
Esse estranho sonho que sonhou Cervantes 
E que sempre é o dilema de cada ser humano... 


Existe, sim! Já existia antes! E existirá depois! 
Porque como Cervantes também somos dois 
Por vezes Quixote... por vezes Quijano... 


Quijano entre seus livros, sonhando a aventura 
Quixote em seu cavalo, com lança e armadura 
(Que adormeça a realidade, o sonho é mais real) 


Quijano envelhecendo em seu comum destino 
Quixote – o corpo ereto, a alma de menino 
O heroico cavaleiro sempre em luta contra o mal. 




(para Fernando Petry – nosso eterno Dom Quixote)
(Poema musicado por Paulo Timm)






quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Existe, sim, existirá depois e já existia antes esse estranho sonho que sonhou Cervantes e que sempre é o dilema de cada ser humano...







A partir de hoje e pelas próximas duas ou três semanas viajaremos junto a Dom Quixote por terras manchegas e quicá por terras além-mar ou aquém mar, posto que o pampa também se quadra para as aventuras deste indômito cavaleiro que saiu – há mais de 400 anos – das páginas de um livro para se tornar o maior dos heróis do nosso mundo: aquele que derrotou as limitações da realidade. Aquele que provou que o sonho, a utopia, a imaginação são maiores que qualquer limite humano. Vamos, pois, cavalgar com ele...

Respeitável público, com vocês... a maior saga da literatura mundial:





O sonho de Cervantes

ou

El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha








Adaptação: Martim César e Jorge Passos

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Quem não assume um risco nunca ganhará uma partida. (G.M P. Keres)


Un partido de ajedrez


El peón avanzó a la quinta de Tertuliano
Pasos de tango en el centro de la cancha
Como un godo desafiando al rey romano
Cual molino frente al loco de La Mancha 


Y en el tablero, tierra ajena y no tanm ancha
Un negro alfil se le interpone mano a mano
Pero no teme a esa muerte que se ensancha
Y cuadro a cuadro gambeteando va el paisano


Se esquiva de una torre. Otra más. Y sigue el juego
El tiempo ya se agota... al instante todo es drama
Acercándose a la octava, arremete, pecho en fuego


Y grita Jaque y ahí está por conquistar al fin la fama
¡Y pierde todo! Lleva un mate, un jaque mate el andariego
Y se va el gaucho sin caballo, sin honor y
sin la dama!


Martim César (Jorge Passos)

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

O hoje é sempre, o amanhã é nunca mais...



Uma menina sobre o penhasco 

Uma menina sobre o penhasco
Está prestes a dar o seu último passo...

O seu vestido esvoaça ao mais leve soprar
De uma brisa noturna...

Uma lua imensa observa, ao fundo
Parada no céu, iluminando a cena.

O murmúrio das ondas quebrando-se nas pedras
Parece um cantar de sereia, ao longe, chamando...

Uma menina sobre o penhasco
Está prestes a dar o seu último passo...

A ilusão inventa asas que a realidade não possui.
O tempo detém seu caminho. O vento já nem respira.

Nenhuma beleza pode ser tão trágica!
Nenhuma tragédia pode ser tão bela!

De repente, o ato final... a rebeldia e a inocência
Desafiam a vida e se misturam à escuridão da noite.

O tempo volta a correr. O vento respira, outra vez.
A lua se afasta, lentamente. O penhasco está vazio...



Martim César

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

"Hemos guardado durante mucho tiempo un silencio bastante parecido a la estupidez" (Fernando de Monteagudo, la paz, 1810)


Operação Condor:
Universindo, mi hermano

A tragédia da Condor em 1978 em Porto Alegre me regalou quatro inesperados hermanos no pampa uruguaio.


Eles olham no olho dos Ministros do Supremo que anistiaram os torturadores


O Conversa Afiada reproduz do Observatorio da Imprensa artigo do jornalista Luiz Cláudio Cunha, que vai ajudar a Comissão da verdade a assar a batata do Geisel – quer dizer, a apurar a criminosa participação do Brasil, na famigerada Operação Condor.     


Universindo, mi hermano



Luiz Cláudio Cunha


Um comando do Exército uruguaio, com a conivência do regime militar brasileiro, saiu de Montevidéu, atravessou clandestinamente a fronteira em novembro de 1978 e desembarcou em Porto Alegre, onde sequestrou um casal de militantes da oposição uruguaia – Universindo Díaz e Lilian Celiberti – e seus dois filhos menores. A operação ilegal foi descoberta por dois jornalistas brasileiros – o repórter Luiz Cláudio Cunha e o fotógrafo João Baptista Scalco, da sucursal da revista Veja no Rio Grande do Sul. Alertados por um telefonema anônimo, dirigiram-se ao apartamento onde o casal morava, na capital gaúcha, e foram recebidos por homens armados. A inesperada aparição dos jornalistas quebrou o sigilo da operação e evitou que os sequestrados fossem mortos. A denúncia do sequestro, que ganhou as manchetes da imprensa brasileira, transformou-se num escândalo internacional, que constrangeu os regimes militares do Brasil e do Uruguai.

O trabalho de investigação de Veja e dos repórteres Cunha e Scalco foi distinguido, em 1979, com o troféu principal do Prêmio Esso, além de conquistar os prêmios Vladimir Herzog, Telesp e Abril (hors concurs). Em 2008, trinta anos após o sequestro, Cunha escreveu o livro Operação Condor: o sequestro dos uruguaios. Uma reportagem dos tempos da ditadura, publicado pela L&PM Editores e premiado com o Jabuti, o Vladimir Herzog e o Casa de Las Americas (Cuba), na categoria de Livro Reportagem (ver “Um jogo de paciência e investigação” e “As garras do Brasil na Operação Condor”, em http://www.observatoriodaimprensa.com.br/).

Na segunda-feira (17/9), a Comissão Nacional da Verdade aprovou a criação de um grupo de trabalho voltado para a Operação Condor, o qual contará com a colaboração do jornalista Luiz Cláudio Cunha.

[Luiz Egypto, editor do Observatório da Imprensa]



O táxi parou à beira da grande avenida, em Montevidéu, e descemos do carro. Trocamos um beijo na face, na velha tradição uruguaia, e nos despedimos com um abraço apertado, acolchoado pelos casacos pesados que nos protegiam do frio de zero grau no final da manhã azulada, sob o sol tíbio do inverno no Uruguai.


Voltei ao táxi, que me levava ao aeroporto de Carrasco e ao voo de volta ao Brasil, e dei uma última olhada pelo vidro traseiro. Vi o homem encasacado, com o seu típico boné de lã, se afastando aos poucos, no seu passo lento e manco, engolido pela multidão.

Foi a última imagem que guardei em vida de Universindo Rodríguez Díaz, naquela terça-feira, 17 de julho de 2012. Passados 47 dias, Universindo morreu aos 60 anos, num domingo ainda frio, 2 de setembro. O homem que sobreviveu às torturas e violências das ditaduras no Brasil e no Uruguai, entre 1978 e 1983, não resistiu ao passo acelerado, imparável, de um mieloma múltiplo, um câncer agressivo e letal que se desenvolve na medula, gerando um crescimento desordenado dos glóbulos brancos, derrubando o sistema imunológico, comprometendo gravemente os rins e submetendo o paciente a dores fortes nos ossos.

Três décadas antes, Universindo padeceu na carne e na alma os efeitos de um suplício igualmente traiçoeiro, oculto, que se disseminava como metástase pelas veias abertas do Cone Sul: o terror de Estado, que atravessava fronteiras legais e geográficas e ultrapassava os limites do sofrimento humano graças ao foco maligno da Operação Condor, a multinacional da repressão que contaminou as Forças Armadas da região com o germe dos bandoleiros sem uniformes convertidos ao sequestro, tortura, assassinato e desaparecimento de quem se opunha ao arbítrio.



O DOI-CODI uruguaio


Universindo sobreviveu ao horror, a partir de novembro de 1978, quando foi sequestrado em Porto Alegre, numa blitz da Condor uruguaia, junto com Lílian Celiberti e seus dois filhos, Camilo (8 anos) e Francesca (3). O casal desarmado, integrante do Partido por la Victoria del Pueblo (PVP), uma sigla de esquerda clandestina (como todas as outras) que se opunha à ditadura no Uruguai, operava no sul do Brasil com um objetivo que fazia tremer os generais de Montevidéu: recolher informações em primeira mão de refugiados sobre as torturas praticadas nos 28 quarteis do território uruguaio e denunciá-las no exterior, por intermédio da imprensa e de entidades de direitos humanos na Europa.

Com a prisão e a tortura no início de novembro, em Montevidéu, de onze militantes do PVP, companheiros de Lílian e Universindo, a ditadura captou a presença do casal em Porto Alegre. Entrou em ação o DOI-CODI uruguaio. O Organismo Coordinador de Operaciones Antisubversivas (OCOA), o CODI que pairava acima das quatro Divisões de Exército do país, acionou o seu braço executor, a secreta Compañia de Contrainformaciones, a versão local do DOI. A Condor uruguaia ganhou sinal verde em Brasília da Condor brasileira, representada pelo CIE, o Centro de Informações do Exército. Para a ação binacional da Condor em Porto Alegre foi mobilizado o mais afamado chefe da repressão política no sul, o delegado do DOPS Pedro Seelig, conhecido como o “Fleury dos Pampas”.

No domingo, 12 de novembro, uma semana após a prisão e a confissão sob torturas do grupo do PVP em Montevidéu, Lilian e Universindo foram detidos na capital gaúcha – ela na Rodoviária de Porto Alegre, ele duas horas depois no apartamento onde moravam, num prédio baixo da Rua Botafogo, no bairro classe média do Menino Deus. Nos dois momentos, o grupo de homens armados tinha o comando do delegado Seelig. Levados para a sede do DOPS, no prédio da Secretaria de Segurança Pública, na Avenida Ipiranga, os uruguaios foram torturados ali mesmo.

Lilian foi despida, encapuzada e encharcada com baldes de água para intensificar o choque elétrico provocado pela picana, a máquina de tortura ligada ao seu corpo por presilhas de metal fixadas nos dedos das mãos e nas orelhas. Universindo foi tratado com dureza ainda maior. Sem capuz, com as mãos algemadas nas costas, perdia algo da vestimenta a cada golpe que recebia. Primeiro a camisa, depois as calças, os sapatos, as meias. Poupam as cuecas, não poupam seu rosto, seu estômago, seu fígado.

Os brasileiros se revezavam na pancadaria com um homem baixo, entroncado, que bate ainda mais forte, um uruguaio de 32 anos, um oficial de um Exército estrangeiro atuando sem constrangimentos dentro de um prédio público brasileiro. O capitão Glauco Yannone era chefe da seção administrativa da Compañia de Contrainformaciones e invadiu o Brasil, com a conivência da ditadura brasileira e o aval da Condor, para fazer o que fazia melhor: interrogar e torturar.



Aprendizes da tortura


Aos 24 anos, ainda sargento, Yannone fez o curso de inteligência C-1 na Escola das Américas (SOA, sigla em inglês), o centro de instrução anti-insurgência que o Exército dos Estados Unidos montou em 1946 na Zona do Canal do Panamá. A SOA era a escola que transformou a democracia do continente numa zona. Por lá passou em três décadas um exército de 60 mil militares latino-americanos que dali extraíram o know-how que os levariam aos golpes de Estado e aos centros de tortura que implantaram o terror de Estado na região nos anos 1960 e 1970. Pela SOA transitaram 332 militares brasileiros – 325 alunos e sete instrutores, que brilharam nos cursos de Operações de Selva, Interrogatório de Inteligência Militar e Operações Psicológicas. Vinte e um deles acabariam despontando na galeria de torturadores da ditadura brasileira.

A influência dos Estados Unidos era forte no pensamento militar do continente – especialmente nos quatro principais regimes militares do Cone Sul. Em três décadas, no período 1950-1979, as academias militares estadunidenses foram frequentadas por 8.659 brasileiros, 6.883 chilenos, 4.017 argentinos e 2.806 uruguaios. Os militares uruguaios tinham uma preferência especial pela Escola das Américas. Nas duas décadas que antecederam o golpe de 1973, um total de 1.020 oficiais uruguaios frequentou 1.068 cursos da escola. Yannone aproveitou tão bem seus ensinamentos de 1970 que, três anos após o golpe militar em seu país, voltou à escola como primeiro-tenente, então matriculado como aluno do curso de “Inteligência Militar 0-11”, entre os dias 16 de janeiro e 28 de maio de 1976.

Como especialista e conterrâneo, Yannone é o que mais bateu em Universindo no DOPS de Porto Alegre. Bateu tanto que cansou. Então, sentou-se no chão, ao lado do preso algemado, e passou a socá-lo com força, com fúria. Tantos socos deixaram o punho do capitão uruguaio doído. Ele então tirou o mocassim que calçava e continuou a golpear Universindo, desta vez com o salto do sapato.

O capitão já não sentia dor, o preso agora sentia muito mais. Então o salto do sapato do capitão doía cada vez mais no corpo machucado de Universindo, mas as respostas continuaram insatisfatórias. Suas algemas foram retiradas e as mãos atadas ao tornozelo. Passaram uma barra de ferro entre os seus punhos amarrados e a dobra dos joelhos, e o penduraram a uns 50 centímetros do chão. De cabeça para baixo, Universindo parecia um frango assado. Ele estava provando o gosto amargo, dolorido, de uma genuína invenção brasileira: o pau de arara, um dos mais temidos instrumentos de tortura dos cárceres do Cone Sul, um legado verde-amarelo à barbárie. As perguntas continuaram, os golpes também. A dormência se infiltrou pelas artérias e veias dos pés e mãos, sem o sangue que se acumulava na cabeça rente ao chão. A dormência cedeu lugar à dor, uma dor cada vez mais insuportável, indecifrável, intangível.



A dor no sangue


Para aumentar o sofrimento de Universindo acoplaram eletrodos no braço, no pulso, na perna, na orelha, nos dedos. Uma dezena de conexões diretas com a dor. Alguém pegou um balde com água que foi jogada sobre o seu corpo seminu. O medo congelou, a água fria enregelou. A manivela girou mais rápida, os choques elétricos da picana provocaram estertores, estremeceram o corpo, mas Universindo continuou lutando e resistindo. O tempo, que não passava, parecia uma eternidade. Universindo foi pendurado pelo meio da tarde. Ficou lá até quase meia-noite de domingo. Horas com o corpo suspenso, como a vida. De repente, o choque e as perguntas cessaram. Ele já não sentia o corpo, só a dor. Tiraram seu corpo inerte do pau de arara e o deixaram no chão ensanguentado.

Universindo parecia morto por dentro, por fora. Ficou ali, moribundo, até que pediu para ir ao banheiro. Tiraram suas algemas e ele cambaleou rumo ao sanitário. Arrastou-se, lento, manco de dor. Abriu a tampa do vaso, imundo como aquele lugar, e sentiu um misto de dor e alívio acompanhar a contração da bexiga. Sentiu medo quando viu a cor escura da urina. Era vermelha, cor de sangue.

Seu organismo resistiu à descarga elétrica, mas o pau de arara descarregou no sangue a mioglobina, uma proteína responsável pela reserva de oxigênio nos músculos. A mioglobina foi liberada na circulação sanguínea junto com outras enzimas, iniciando o processo de insuficiência renal aguda. A mioglobina era um sinal de alerta, um sinal vermelho. Um sinal de sangue, sangue na urina. Passados trinta minutos, o alerta se converteu em ameaça letal: Universindo já estava ali há mais de quatro, cinco horas, pendurado como um naco de carne em um gancho de açougue.

A mioglobina, quando liberada na corrente sanguínea, passa a ser filtrada pelos rins, que não suportam a sobrecarga e começam a falhar. A proteína se decompõe no sangue, como uma toxina maligna que leva ao colapso os rins. Universindo não sabia, mas tornava-se uma vítima de rabdomiólise, que os médicos traduzem como uma síndrome causada por danos na musculatura do esqueleto, provocados por vazamento de mioglobina para o sangue. A urina cor castanha avermelhada que Universindo viu jorrar no vaso era a prova disso. A rabdomiólise vem acompanhada de convulsões, edemas, espasmos, calafrios, cãibras, febre, insuficiência renal e respiratória.



Descida ao inferno


Nos textos de medicina, a rabdomiólise é um distúrbio que afeta uma em cada dez mil pessoas de qualquer idade. Na crônica da tortura, é uma fatalidade que atinge dez em cada dez presos que passam pelo pau de arara. Universindo e sua urina cor de sangue eram a prova científica disso tudo. O efeito colateral de Yannone, de Seelig, da Compañía, do DOPS. Universindo era a sequela viva da Condor, o câncer do Cone Sul. Como o câncer que apressaria o fim de sua vida.

Universindo sobreviveu à sala de torturas do DOPS brasileiro para cair no inferno das prisões militares no Uruguai. Foi torturado por oficiais do Exército no forte de Santa Teresa, o quartel uruguaio em Chuy, no outro lado do extremo sul do Brasil. Voltou a apanhar na sede da Compañia de Contrainformaciones, na calle Colorado, em Montevidéu. O som do rádio aumentado era o prenúncio de novos sofrimentos na oficina mecânica do lugar, improvisada como área de torturas.

Em 6 de dezembro, 24 dias após o sequestro de Porto Alegre, Universindo – assim como acontecia com Lílian – desceu literalmente ao El Infierno, descrição exata para o mais temido centro de suplícios do país, a sede do 13º Batalhão de Infantaria, na esquina da Avenida de Las Instrucciones com a bulevar Battle y Ordóñez, em Montevidéu.

Universindo submeteu-se, ali, a uma férrea disciplina militar desenhada para quebrar o moral dos presos. Tinha apenas três minutos ao longo do dia para ir ao banheiro, em três horários absurdamente inegociáveis: seis da manhã, uma da tarde e nove horas da noite. Entre uma sessão e outra de pancadas, Universindo foi mantido sempre acorrentado, em posição fetal, até junho de 1979. Um tormento que lhe provocaria danos permanentes no joelho, deixando o seu andar mais lento, trôpego, sempre dolorido. Apesar dos castigos, a disciplina de Universindo crescia.

Ele se orgulhava de nunca ter revelado nada aos sequestradores, resistindo às torturas atrozes, aguçadas pela prisão dias antes de uma dezena de companheiros do PVP em Montevidéu. “Não falei porque estava convencido de que, naquele momento, a melhor forma de ajudar a luta revolucionária era o silêncio. Era preciso estar com o ânimo sereno, confiante, para poder suportar as torturas com dignidade e silêncio. As gerações de hoje não podem sequer imaginar o que seja um dia de tortura”, contou Universindo ao repórter Virgílio de Mattos, em uma entrevista publicada na revista Forum, em fevereiro de 2012.

Nada, na biografia de Universindo, apontava para a notoriedade. Filho de um modesto casal de trabalhadores rurais, com quatro irmãos e duas irmãs, ele nasceu em Artigas, departamento na fronteira com o Brasil, dominado pela criação de gado e fazendeiros conservadores que apoiavam os partidos tradicionais. O pai trabalhava em Bella Unión, base do sindicato dos canavieiros onde começou a despontar a liderança de um combativo advogado, Raúl Sendic. No melado da agitação sindical no campo começou a escorrer a radicalização política que acabou cristalizada, na década de 1960, no grupo de guerrilha urbana dos Tupamaros, sob o comando de Sendic. Universindo trocou o interior pela capital, com o sonho de curar os males do mundo. Queria ser médico e ingressou na Faculdade de Medicina.

A militância política na universidade cresceu junto com a crise da democracia. Universindo estava no quarto ano de medicina quando entrou na clandestinidade, para escapar à prisão de um regime cada vez mais arbitrário. Caçado em Montevidéu, cruzou o rio da Prata para sobreviver em Buenos Aires. Ali participou, em 1975, da fundação do PVP no exílio. A repressão coordenada pela Condor forçou sua saída para a Suécia, onde ganhou uma bolsa para concluir sua formação de médico. Nove meses depois, porém, de volta à militância com refugiados uruguaios na França e na Espanha, decidiu lutar mais de perto pelos patrícios que sofriam com a ditadura no Uruguai. Escolheu o Rio Grande do Sul, o estado vizinho a Artigas, sua terra natal. Optou pela segurança de Porto Alegre, onde fixou residência no apartamento da Rua Botafogo junto com Lilian e seus dois filhos.

Não esperava que a Condor fizesse na capital gaúcha o que costumava fazer na capital argentina. Até que aconteceu o sequestro de novembro de 1978.

Universindo, ao contrário da maioria de sua geração desgarrada pela violência, sobreviveu e emergiu da luta política como um cidadão engajado, íntegro, firme, sereno, de fala mansa, desprovido de rancor e consciente de sua história. O mundo perdeu um médico promissor e ganhou um historiador dedicado. Converteu-se ao resgate da memória do forte movimento sindical uruguaio, coordenando a produção de livros e documentários, na condição de chefe do Departamento de Investigação Histórica da Biblioteca Nacional.


A vida na bolha

Ele vivia assim, cheio de planos e projetos, quando foi surpreendido no início de janeiro passado com fortes dores nas costas. Internado às pressas numa terça-feira no hospital, soube que sofria de câncer na medula já num estágio avançado. No sábado, com o coração enfraquecido, foi transferido para a UTI, com complicações respiratórias e neurológicas. Um mês depois, contudo, o bravo Universindo estava de pé outra vez, numa surpreendente recuperação. Voltou a fazer planos, a discutir livros, a pesquisar imagens para novos documentários.

Em 19 de abril passado, a exemplo de Lilian e seus filhos, prestou depoimento em Montevidéu à juíza Mariana Mota sobre o sequestro de Porto Alegre, um dos 81 casos de crimes de lesa-humanidade reabertos por decisão do presidente José Mujica, o ex-líder Tupamaro que engrossou o movimento nascido na terra natal de Universindo. Ele estava retemperado pela certeza de que, enfim, acabaria a impunidade que protege há três décadas os camaradas sequestradores do capitão Yannone.

Existiam bons motivos para o otimismo contagiante de Universindo: Mariana Mota foi a dura magistrada que, em fevereiro de 2011, condenou o ex-presidente Juan María Bordaberry a 30 anos de prisão por liderar o golpe de Estado de 1973 que dissolveu o Parlamento e a centenária democracia do país, também responsabilizado diretamente por 14 assassinatos e desaparecimentos forçados durante a ditadura. Bordaberry cumpriu três meses na prisão e, por razões de saúde, foi transferido para sua casa, onde morreu dois meses depois, aos 83 anos.

Universindo ficou ainda mais animado, no final de julho, quando o Fundo Nacional de Recursos aprovou o financiamento para o seu autotransplante de medula óssea, programado para acontecer em duas semanas. Iria viver um mês no interior de uma “bolha” de isolamento para controlar sua baixa imunidade. Em meados de agosto, a cirurgia foi realizada com sucesso. Dez dias depois, apesar dos três potentes antibióticos que reforçavam suas defesas, Universindo começou a piorar. Foi surpreendido por uma traiçoeira infecção hospitalar, que irrompeu quanto estava fragilizado pela imunidade zero. A saúde piorou no sábado e ele morreu no domingo, 2 de setembro, em Montevidéu, ao lado da ex-mulher, Ivonne Trías, uma jornalista que passou 12 anos presa pela ditadura, e do filho, Carlos Iván, de 26 anos.


Nos versos da milonga Los Hermanos, o poeta argentino Atahualpa Yupanqui cantou:

Yo tengo tantos hermanos/ que no los puedo contar/

Een el valle, la montaña/ en la pampa y en el mar.



A tragédia da Condor em 1978 em Porto Alegre me regalou quatro inesperados hermanos no pampa uruguaio.


Um deles, mi hermano Universindo, de maneira ainda mais imprevista, acaba de assumir para sempre a dignidade do silêncio. E a eternidade da memória.



Luiz Cláudio Cunha, jornalista, é autor de Operação


Condor: o Sequestro dos Uruguaios (L&PM, 2008)

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Se os fatos não se encaixam na teoria, modifique os fatos. Albert Einstein



Alquimia

Pela lei dos corpos em movimento
Forças centrífuga e centrípeta
Teu corpo, meu corpo
Exata sincronia

Pela lei da vibração molecular
Dilatação dos líquidos
Meu sangue, teu suor
Alquimia perfeita

Pela lei da gravitação universal
Meteoro no teu mar
Meus olhos, tuas órbitas
Explosão de supernova

Pela lei da relatividade
Espaço-tempo indivisível
Eu em ti, tu em mim
Átimo infinito

Pela lei quântica dos átomos
Indecifrável conceber
Eu contigo, tu comigo
Minha única lei.

Martim César


terça-feira, 16 de outubro de 2012

Perdi a noção dos dias, vendo chegadas... partidas... fui descobrindo que a vida é só uma grande estação.


No olhar de quem partiu
 
Quando um dia fui embora, de uma coisa eu não sabia
Que a vida sempre cobra o momento da partida
Fui buscar o meu destino - fui viver longe daqui -
Ave que deixou o ninho com o céu pra conquistar

E voando eu nem vi quando me acenava desde o chão
Minha infância me chamando de uma antiga estação
Já não era mais menino... tudo, enfim, ficou pra trás
Quem escolhe esse caminho diz adeus pra nunca mais
Vi um mundo diferente; tanta flor, tantos espinhos
Mesmo em meio à tanta gente, muitas vezes tão sozinho

Quando veio um sentimento que eu não sei bem explicar
Feito sol que brilha dentro, virou chuva em meu olhar...
Porque quando eu fui embora – já faz tempo e ainda lembro -
Tinha às mãos uma guitarra... e uns poemas pra sonhar...
É que quando a gente parte, pensa que foi para sempre
Mas um dia... - cedo ou tarde! - tudo volta ao seu lugar

Na distância é que se sente que de nós algo ficou
Neste chão que foi da gente... onde tudo começou
A velha casa como estará... na estação do meu lugar?
E será que ainda tem lá um alguém a me esperar?
A saudade faz as malas... o coração inventa o cais
Mas o tempo que não para diz que é tarde demais!!!


Martim César

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

A veces murmura cosas incoherentes, habla de la guerra, imita el cañón.... Víctor Heredia



Tan viejo como el tren

Ese viejo en la estación
Ahí parado en el andén
Aún espera a cada día
La llegada de su tren
Si es la vida, si es la muerte
Eso no importa más
Pues su tiempo ya es otro
Y ese nunca volverá

!Cuántos amores puebleros
Sus ojos vieron nacer!
!Cuantas historias perdidas
Bajo el cielo del ayer...!
Memorias que siguen vivas
En el alma de este viejo
Que pasa todas las tardes
Mirando así a lo lejos...

Jamás pensó que su mundo
Iba a llegar a este tiempo
Con una estación tan vacía
Y tan llena así de recuerdos...
No más que ayer era un niño
Cruzando por los rieles
Donde ha pasado la vida
Y hoy no pasan más trenes

Por eso de vez en cuando
Cierra sus ojos y sueña
Y en esas horas escucha
Silbando un tren que se acerca
Y entonces vuelve a ser niño
Corriendo rumbo al andén
Sonriéndose como antes
Que está llegando su tren...

Martim César