A tragédia da Condor em 1978 em Porto Alegre me regalou quatro inesperados hermanos no pampa uruguaio.
Eles olham no olho dos Ministros do Supremo que anistiaram os torturadores
O Conversa Afiada
reproduz do Observatorio da Imprensa artigo do jornalista Luiz Cláudio Cunha,
que vai ajudar a Comissão da verdade a assar a batata do Geisel – quer dizer, a apurar a criminosa participação do Brasil, na famigerada Operação Condor.
Luiz Cláudio Cunha
Um
comando do Exército uruguaio, com a conivência do regime militar
brasileiro, saiu de Montevidéu, atravessou clandestinamente a fronteira
em novembro de 1978 e desembarcou em Porto Alegre, onde sequestrou um
casal de militantes da oposição uruguaia – Universindo Díaz e Lilian
Celiberti – e seus dois filhos menores. A operação ilegal foi descoberta
por dois jornalistas brasileiros – o repórter Luiz Cláudio Cunha e o
fotógrafo João Baptista Scalco, da sucursal da revista Veja no Rio
Grande do Sul. Alertados por um telefonema anônimo, dirigiram-se ao
apartamento onde o casal morava, na capital gaúcha, e foram recebidos
por homens armados. A inesperada aparição dos jornalistas quebrou o
sigilo da operação e evitou que os sequestrados fossem mortos. A
denúncia do sequestro, que ganhou as manchetes da imprensa brasileira,
transformou-se num escândalo internacional, que constrangeu os regimes
militares do Brasil e do Uruguai.
O trabalho de investigação de
Veja e dos repórteres Cunha e Scalco foi distinguido, em 1979, com o
troféu principal do Prêmio Esso, além de conquistar os prêmios Vladimir
Herzog, Telesp e Abril (hors concurs). Em 2008, trinta anos após o
sequestro, Cunha escreveu o livro Operação Condor: o sequestro dos
uruguaios. Uma reportagem dos tempos da ditadura, publicado pela
L&PM Editores e premiado com o Jabuti, o Vladimir Herzog e o Casa de
Las Americas (Cuba), na categoria de Livro Reportagem (ver “Um jogo de
paciência e investigação” e “As garras do Brasil na Operação Condor”, em
http://www.observatoriodaimprensa.com.br/).
Na segunda-feira
(17/9), a Comissão Nacional da Verdade aprovou a criação de um grupo de
trabalho voltado para a Operação Condor, o qual contará com a
colaboração do jornalista Luiz Cláudio Cunha.
[Luiz Egypto, editor do Observatório da Imprensa]
O táxi parou à beira da grande avenida, em Montevidéu, e descemos do
carro. Trocamos um beijo na face, na velha tradição uruguaia, e nos
despedimos com um abraço apertado, acolchoado pelos casacos pesados que
nos protegiam do frio de zero grau no final da manhã azulada, sob o sol
tíbio do inverno no Uruguai.
Voltei ao táxi,
que me levava ao aeroporto de Carrasco e ao voo de volta ao Brasil, e
dei uma última olhada pelo vidro traseiro. Vi o homem encasacado, com o
seu típico boné de lã, se afastando aos poucos, no seu passo lento e
manco, engolido pela multidão.
Foi a última imagem que guardei
em vida de Universindo Rodríguez Díaz, naquela terça-feira, 17 de julho
de 2012. Passados 47 dias, Universindo morreu aos 60 anos, num domingo
ainda frio, 2 de setembro. O homem que sobreviveu às torturas e
violências das ditaduras no Brasil e no Uruguai, entre 1978 e 1983, não
resistiu ao passo acelerado, imparável, de um mieloma múltiplo, um
câncer agressivo e letal que se desenvolve na medula, gerando um
crescimento desordenado dos glóbulos brancos, derrubando o sistema
imunológico, comprometendo gravemente os rins e submetendo o paciente a
dores fortes nos ossos.
Três décadas antes, Universindo padeceu
na carne e na alma os efeitos de um suplício igualmente traiçoeiro,
oculto, que se disseminava como metástase pelas veias abertas do Cone
Sul: o terror de Estado, que atravessava fronteiras legais e geográficas
e ultrapassava os limites do sofrimento humano graças ao foco maligno
da Operação Condor, a multinacional da repressão que contaminou as
Forças Armadas da região com o germe dos bandoleiros sem uniformes
convertidos ao sequestro, tortura, assassinato e desaparecimento de quem
se opunha ao arbítrio.
O DOI-CODI uruguaio
Universindo sobreviveu ao horror, a partir de novembro de 1978, quando
foi sequestrado em Porto Alegre, numa blitz da Condor uruguaia, junto
com Lílian Celiberti e seus dois filhos, Camilo (8 anos) e Francesca
(3). O casal desarmado, integrante do Partido por la Victoria del Pueblo
(PVP), uma sigla de esquerda clandestina (como todas as outras) que se
opunha à ditadura no Uruguai, operava no sul do Brasil com um objetivo
que fazia tremer os generais de Montevidéu: recolher informações em
primeira mão de refugiados sobre as torturas praticadas nos 28 quarteis
do território uruguaio e denunciá-las no exterior, por intermédio da
imprensa e de entidades de direitos humanos na Europa.
Com a
prisão e a tortura no início de novembro, em Montevidéu, de onze
militantes do PVP, companheiros de Lílian e Universindo, a ditadura
captou a presença do casal em Porto Alegre. Entrou em ação o DOI-CODI
uruguaio. O Organismo Coordinador de Operaciones Antisubversivas (OCOA),
o CODI que pairava acima das quatro Divisões de Exército do país,
acionou o seu braço executor, a secreta Compañia de Contrainformaciones,
a versão local do DOI. A Condor uruguaia ganhou sinal verde em Brasília
da Condor brasileira, representada pelo CIE, o Centro de Informações do
Exército. Para a ação binacional da Condor em Porto Alegre foi
mobilizado o mais afamado chefe da repressão política no sul, o delegado
do DOPS Pedro Seelig, conhecido como o “Fleury dos Pampas”.
No
domingo, 12 de novembro, uma semana após a prisão e a confissão sob
torturas do grupo do PVP em Montevidéu, Lilian e Universindo foram
detidos na capital gaúcha – ela na Rodoviária de Porto Alegre, ele duas
horas depois no apartamento onde moravam, num prédio baixo da Rua
Botafogo, no bairro classe média do Menino Deus. Nos dois momentos, o
grupo de homens armados tinha o comando do delegado Seelig. Levados para
a sede do DOPS, no prédio da Secretaria de Segurança Pública, na
Avenida Ipiranga, os uruguaios foram torturados ali mesmo.
Lilian foi despida, encapuzada e encharcada com baldes de água para
intensificar o choque elétrico provocado pela picana, a máquina de
tortura ligada ao seu corpo por presilhas de metal fixadas nos dedos das
mãos e nas orelhas. Universindo foi tratado com dureza ainda maior. Sem
capuz, com as mãos algemadas nas costas, perdia algo da vestimenta a
cada golpe que recebia. Primeiro a camisa, depois as calças, os sapatos,
as meias. Poupam as cuecas, não poupam seu rosto, seu estômago, seu
fígado.
Os brasileiros se revezavam na pancadaria com um homem
baixo, entroncado, que bate ainda mais forte, um uruguaio de 32 anos, um
oficial de um Exército estrangeiro atuando sem constrangimentos dentro
de um prédio público brasileiro. O capitão Glauco Yannone era chefe da
seção administrativa da Compañia de Contrainformaciones e invadiu o
Brasil, com a conivência da ditadura brasileira e o aval da Condor, para
fazer o que fazia melhor: interrogar e torturar.
Aprendizes da tortura
Aos 24 anos, ainda sargento, Yannone fez o curso de inteligência C-1 na
Escola das Américas (SOA, sigla em inglês), o centro de instrução
anti-insurgência que o Exército dos Estados Unidos montou em 1946 na
Zona do Canal do Panamá. A SOA era a escola que transformou a democracia
do continente numa zona. Por lá passou em três décadas um exército de
60 mil militares latino-americanos que dali extraíram o know-how que os
levariam aos golpes de Estado e aos centros de tortura que implantaram o
terror de Estado na região nos anos 1960 e 1970. Pela SOA transitaram
332 militares brasileiros – 325 alunos e sete instrutores, que brilharam
nos cursos de Operações de Selva, Interrogatório de Inteligência
Militar e Operações Psicológicas. Vinte e um deles acabariam despontando
na galeria de torturadores da ditadura brasileira.
A influência
dos Estados Unidos era forte no pensamento militar do continente –
especialmente nos quatro principais regimes militares do Cone Sul. Em
três décadas, no período 1950-1979, as academias militares
estadunidenses foram frequentadas por 8.659 brasileiros, 6.883 chilenos,
4.017 argentinos e 2.806 uruguaios. Os militares uruguaios tinham uma
preferência especial pela Escola das Américas. Nas duas décadas que
antecederam o golpe de 1973, um total de 1.020 oficiais uruguaios
frequentou 1.068 cursos da escola. Yannone aproveitou tão bem seus
ensinamentos de 1970 que, três anos após o golpe militar em seu país,
voltou à escola como primeiro-tenente, então matriculado como aluno do
curso de “Inteligência Militar 0-11”, entre os dias 16 de janeiro e 28
de maio de 1976.
Como especialista e conterrâneo, Yannone é o
que mais bateu em Universindo no DOPS de Porto Alegre. Bateu tanto que
cansou. Então, sentou-se no chão, ao lado do preso algemado, e passou a
socá-lo com força, com fúria. Tantos socos deixaram o punho do capitão
uruguaio doído. Ele então tirou o mocassim que calçava e continuou a
golpear Universindo, desta vez com o salto do sapato.
O capitão
já não sentia dor, o preso agora sentia muito mais. Então o salto do
sapato do capitão doía cada vez mais no corpo machucado de Universindo,
mas as respostas continuaram insatisfatórias. Suas algemas foram
retiradas e as mãos atadas ao tornozelo. Passaram uma barra de ferro
entre os seus punhos amarrados e a dobra dos joelhos, e o penduraram a
uns 50 centímetros do chão. De cabeça para baixo, Universindo parecia um
frango assado. Ele estava provando o gosto amargo, dolorido, de uma
genuína invenção brasileira: o pau de arara, um dos mais temidos
instrumentos de tortura dos cárceres do Cone Sul, um legado
verde-amarelo à barbárie. As perguntas continuaram, os golpes também. A
dormência se infiltrou pelas artérias e veias dos pés e mãos, sem o
sangue que se acumulava na cabeça rente ao chão. A dormência cedeu lugar
à dor, uma dor cada vez mais insuportável, indecifrável, intangível.
A dor no sangue
Para aumentar o sofrimento de Universindo acoplaram eletrodos no braço,
no pulso, na perna, na orelha, nos dedos. Uma dezena de conexões
diretas com a dor. Alguém pegou um balde com água que foi jogada sobre o
seu corpo seminu. O medo congelou, a água fria enregelou. A manivela
girou mais rápida, os choques elétricos da picana provocaram estertores,
estremeceram o corpo, mas Universindo continuou lutando e resistindo. O
tempo, que não passava, parecia uma eternidade. Universindo foi
pendurado pelo meio da tarde. Ficou lá até quase meia-noite de domingo.
Horas com o corpo suspenso, como a vida. De repente, o choque e as
perguntas cessaram. Ele já não sentia o corpo, só a dor. Tiraram seu
corpo inerte do pau de arara e o deixaram no chão ensanguentado.
Universindo parecia morto por dentro, por fora. Ficou ali, moribundo,
até que pediu para ir ao banheiro. Tiraram suas algemas e ele cambaleou
rumo ao sanitário. Arrastou-se, lento, manco de dor. Abriu a tampa do
vaso, imundo como aquele lugar, e sentiu um misto de dor e alívio
acompanhar a contração da bexiga. Sentiu medo quando viu a cor escura da
urina. Era vermelha, cor de sangue.
Seu organismo resistiu à
descarga elétrica, mas o pau de arara descarregou no sangue a
mioglobina, uma proteína responsável pela reserva de oxigênio nos
músculos. A mioglobina foi liberada na circulação sanguínea junto com
outras enzimas, iniciando o processo de insuficiência renal aguda. A
mioglobina era um sinal de alerta, um sinal vermelho. Um sinal de
sangue, sangue na urina. Passados trinta minutos, o alerta se converteu
em ameaça letal: Universindo já estava ali há mais de quatro, cinco
horas, pendurado como um naco de carne em um gancho de açougue.
A
mioglobina, quando liberada na corrente sanguínea, passa a ser filtrada
pelos rins, que não suportam a sobrecarga e começam a falhar. A
proteína se decompõe no sangue, como uma toxina maligna que leva ao
colapso os rins. Universindo não sabia, mas tornava-se uma vítima de
rabdomiólise, que os médicos traduzem como uma síndrome causada por
danos na musculatura do esqueleto, provocados por vazamento de
mioglobina para o sangue. A urina cor castanha avermelhada que
Universindo viu jorrar no vaso era a prova disso. A rabdomiólise vem
acompanhada de convulsões, edemas, espasmos, calafrios, cãibras, febre,
insuficiência renal e respiratória.
Descida ao inferno
Nos textos de medicina, a rabdomiólise é um distúrbio que afeta uma em
cada dez mil pessoas de qualquer idade. Na crônica da tortura, é uma
fatalidade que atinge dez em cada dez presos que passam pelo pau de
arara. Universindo e sua urina cor de sangue eram a prova científica
disso tudo. O efeito colateral de Yannone, de Seelig, da Compañía, do
DOPS. Universindo era a sequela viva da Condor, o câncer do Cone Sul.
Como o câncer que apressaria o fim de sua vida.
Universindo
sobreviveu à sala de torturas do DOPS brasileiro para cair no inferno
das prisões militares no Uruguai. Foi torturado por oficiais do Exército
no forte de Santa Teresa, o quartel uruguaio em Chuy, no outro lado do
extremo sul do Brasil. Voltou a apanhar na sede da Compañia de
Contrainformaciones, na calle Colorado, em Montevidéu. O som do rádio
aumentado era o prenúncio de novos sofrimentos na oficina mecânica do
lugar, improvisada como área de torturas.
Em 6 de dezembro, 24
dias após o sequestro de Porto Alegre, Universindo – assim como
acontecia com Lílian – desceu literalmente ao El Infierno, descrição
exata para o mais temido centro de suplícios do país, a sede do 13º
Batalhão de Infantaria, na esquina da Avenida de Las Instrucciones com a
bulevar Battle y Ordóñez, em Montevidéu.
Universindo
submeteu-se, ali, a uma férrea disciplina militar desenhada para quebrar
o moral dos presos. Tinha apenas três minutos ao longo do dia para ir
ao banheiro, em três horários absurdamente inegociáveis: seis da manhã,
uma da tarde e nove horas da noite. Entre uma sessão e outra de
pancadas, Universindo foi mantido sempre acorrentado, em posição fetal,
até junho de 1979. Um tormento que lhe provocaria danos permanentes no
joelho, deixando o seu andar mais lento, trôpego, sempre dolorido.
Apesar dos castigos, a disciplina de Universindo crescia.
Ele se
orgulhava de nunca ter revelado nada aos sequestradores, resistindo às
torturas atrozes, aguçadas pela prisão dias antes de uma dezena de
companheiros do PVP em Montevidéu. “Não falei porque estava convencido
de que, naquele momento, a melhor forma de ajudar a luta revolucionária
era o silêncio. Era preciso estar com o ânimo sereno, confiante, para
poder suportar as torturas com dignidade e silêncio. As gerações de hoje
não podem sequer imaginar o que seja um dia de tortura”, contou
Universindo ao repórter Virgílio de Mattos, em uma entrevista publicada
na revista Forum, em fevereiro de 2012.
Nada, na biografia de
Universindo, apontava para a notoriedade. Filho de um modesto casal de
trabalhadores rurais, com quatro irmãos e duas irmãs, ele nasceu em
Artigas, departamento na fronteira com o Brasil, dominado pela criação
de gado e fazendeiros conservadores que apoiavam os partidos
tradicionais. O pai trabalhava em Bella Unión, base do sindicato dos
canavieiros onde começou a despontar a liderança de um combativo
advogado, Raúl Sendic. No melado da agitação sindical no campo começou a
escorrer a radicalização política que acabou cristalizada, na década de
1960, no grupo de guerrilha urbana dos Tupamaros, sob o comando de
Sendic. Universindo trocou o interior pela capital, com o sonho de curar
os males do mundo. Queria ser médico e ingressou na Faculdade de
Medicina.
A militância política na universidade cresceu junto
com a crise da democracia. Universindo estava no quarto ano de medicina
quando entrou na clandestinidade, para escapar à prisão de um regime
cada vez mais arbitrário. Caçado em Montevidéu, cruzou o rio da Prata
para sobreviver em Buenos Aires. Ali participou, em 1975, da fundação do
PVP no exílio. A repressão coordenada pela Condor forçou sua saída para
a Suécia, onde ganhou uma bolsa para concluir sua formação de médico.
Nove meses depois, porém, de volta à militância com refugiados uruguaios
na França e na Espanha, decidiu lutar mais de perto pelos patrícios que
sofriam com a ditadura no Uruguai. Escolheu o Rio Grande do Sul, o
estado vizinho a Artigas, sua terra natal. Optou pela segurança de Porto
Alegre, onde fixou residência no apartamento da Rua Botafogo junto com
Lilian e seus dois filhos.
Não esperava que a Condor fizesse na
capital gaúcha o que costumava fazer na capital argentina. Até que
aconteceu o sequestro de novembro de 1978.
Universindo, ao
contrário da maioria de sua geração desgarrada pela violência,
sobreviveu e emergiu da luta política como um cidadão engajado, íntegro,
firme, sereno, de fala mansa, desprovido de rancor e consciente de sua
história. O mundo perdeu um médico promissor e ganhou um historiador
dedicado. Converteu-se ao resgate da memória do forte movimento sindical
uruguaio, coordenando a produção de livros e documentários, na condição
de chefe do Departamento de Investigação Histórica da Biblioteca
Nacional.
A vida na bolha
Ele vivia assim, cheio de
planos e projetos, quando foi surpreendido no início de janeiro passado
com fortes dores nas costas. Internado às pressas numa terça-feira no
hospital, soube que sofria de câncer na medula já num estágio avançado.
No sábado, com o coração enfraquecido, foi transferido para a UTI, com
complicações respiratórias e neurológicas. Um mês depois, contudo, o
bravo Universindo estava de pé outra vez, numa surpreendente
recuperação. Voltou a fazer planos, a discutir livros, a pesquisar
imagens para novos documentários.
Em 19 de abril passado, a
exemplo de Lilian e seus filhos, prestou depoimento em Montevidéu à
juíza Mariana Mota sobre o sequestro de Porto Alegre, um dos 81 casos de
crimes de lesa-humanidade reabertos por decisão do presidente José
Mujica, o ex-líder Tupamaro que engrossou o movimento nascido na terra
natal de Universindo. Ele estava retemperado pela certeza de que, enfim,
acabaria a impunidade que protege há três décadas os camaradas
sequestradores do capitão Yannone.
Existiam bons motivos para o
otimismo contagiante de Universindo: Mariana Mota foi a dura magistrada
que, em fevereiro de 2011, condenou o ex-presidente Juan María
Bordaberry a 30 anos de prisão por liderar o golpe de Estado de 1973 que
dissolveu o Parlamento e a centenária democracia do país, também
responsabilizado diretamente por 14 assassinatos e desaparecimentos
forçados durante a ditadura. Bordaberry cumpriu três meses na prisão e,
por razões de saúde, foi transferido para sua casa, onde morreu dois
meses depois, aos 83 anos.
Universindo ficou ainda mais animado,
no final de julho, quando o Fundo Nacional de Recursos aprovou o
financiamento para o seu autotransplante de medula óssea, programado
para acontecer em duas semanas. Iria viver um mês no interior de uma
“bolha” de isolamento para controlar sua baixa imunidade. Em meados de
agosto, a cirurgia foi realizada com sucesso. Dez dias depois, apesar
dos três potentes antibióticos que reforçavam suas defesas, Universindo
começou a piorar. Foi surpreendido por uma traiçoeira infecção
hospitalar, que irrompeu quanto estava fragilizado pela imunidade zero. A
saúde piorou no sábado e ele morreu no domingo, 2 de setembro, em
Montevidéu, ao lado da ex-mulher, Ivonne Trías, uma jornalista que
passou 12 anos presa pela ditadura, e do filho, Carlos Iván, de 26 anos.
Nos versos da milonga Los Hermanos, o poeta argentino Atahualpa Yupanqui cantou:
Yo tengo tantos hermanos/ que no los puedo contar/
Een el valle, la montaña/ en la pampa y en el mar.
A tragédia da Condor em 1978 em Porto Alegre me regalou quatro inesperados hermanos no pampa uruguaio.
Um
deles, mi hermano Universindo, de maneira ainda mais imprevista, acaba
de assumir para sempre a dignidade do silêncio. E a eternidade da
memória.
Luiz Cláudio Cunha, jornalista, é autor de Operação
Condor: o Sequestro dos Uruguaios (L&PM, 2008)