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segunda-feira, 21 de dezembro de 2015



Deve ser o rio. Só pode

Nesta segunda, o jornalista Pablo Rodrigues dedica a coluna ao espetáculo Náufragos urbanos, no Teatro Esperança
Por: Pablo Rodrigues
pablo@diariopopular.com.br 
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Em Jaguarão, todos são devedores do rio. Por lá, quem não conhece o rio, desconhece o homem. O rio - a travessia - o homem. Em Jaguarão, a poesia de Martim César é hoje rosiana e reveladora canoa: “rio abaixo, rio a fora, rio a dentro”. Quem tem ouvidos para ouvir, que ouça: Náufragos urbanos - Cartas de marear, de Martim César, Ro Bjerk e Ricardo Fragoso. Poesia pura, em canções.
O leitor duvida, crê que exagero? Veja um breve trecho do samba Faca de ponta (Carta 2):
“Às vezes o mundo nos pega de ponta
Nos leva por conta sem nos consultar
E somos tão frágeis pra vencer a corrente
Que nos leva, inclemente, pros perigos do mar
Mas nem por isso, amigo, eu descreio do mundo
Pois já sei, lá no fundo, que viver é lutar
Para aqueles que querem que eu lamente os espinhos
Planto flor nos caminhos e convido a sonhar”
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No recital de apresentação de Náufragos urbanos, na última sexta-feira à noite, o público do Teatro Esperança viu-se remoçado. E - “A vida nos pede bem mais!” - despertou, como quem de repente se lembrasse que, postas à parte todas as míseras tristezas cotidianas, teve, tem e sempre terá vocação à alegria. E à beleza. Porque há, sim, o direito à alegria. E à beleza. Sei que não falo só por mim. Definitivamente, não falo só por mim. Falo por quem nem sei. Tanta gente à minha volta.
Tudo em Náufragos urbanos é talento e delicadeza. Em Casa vazia (Carta 4), canção digna de um Lupicínio Rodrigues, o diálogo entre a voz de Ro Bjerk e a flauta de Gil Soares encanta, abre portas e escancara janelas: leva o ouvinte, não sem doçura, à casa da melancolia. Herdeiro de Neruda, Martim César é capaz de falar - com igual engenho - sobre lutas e amores. Ouso dizer que, atualmente, na poesia do Rio Grande do Sul, não há quem dele se aproxime, tamanha versatilidade em compor.
As parcerias do álbum são todas acertadíssimas. O time de músicos foi escolhido a dedo. Além dos excelentes Ricardo Fragoso (que assina quase todas as músicas com Martim), Ro Bjerk e Gil Soares, também transitam pelas canções Paulo Timm, Aluisio Rockemback, Renato Popó, Fabrício Moura (Pardal), Jucá de Leon, Daniel Zanotelli, Lyber Bermudez, Eduardo Varella, Davi Mesquita Batuka, Jortan Lima e Hélio Mandeco.
Ainda na noite da última sexta, o público do Teatro Esperança pôde arrepiar-se, antes da apresentação de Náufragos urbanos, com a voz firme e doce de Laura Correa, cantora uruguaia de apenas 16 anos inacreditavelmente pronta para os palcos. Vê-la, em Jaguarão, misturada a Martim e a tantos outros, é reafirmar que, sim, Schlee esteve sempre certo: na fronteira, tudo é “uma terra só”.
Uma cidade vale pelo tanto que acrescentou de patrimônio cultural ao mundo. A Jaguarão, bastaria ter parido Aldyr Garcia Schlee e sua literatura. Há quem trocaria reinos por O dia em que o papa foi a Melo ou Contos gardelianos. Contudo, esta pequenina terra jaguarense - maravilhoso mundo - não se cansa de parir artistas, de espalhar encantamento e luta. Deve ser o rio. Só pode.
Gracias, Martim! Gracias, Jaguarão!
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sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

A um grande amigo (e poeta) que partiu antes do combinado



Poema no meio do mundo
                                                                Para Enrique Bacci

        Está certo que a vida é uma sucessão
        E que virão os novos
- que já fomos um dia –
Para nos substituir.
É a lei da vida. Imutável em nossa mutação.
Mas não é justo sairmos de cena
Enquanto ainda há aplausos,
Mesmo que sejam esparsos
E de lugares distantes na plateia.

Pois eu te recordo, Enrique,
Com tua voz suave de metálicas sonoridades,
Com tua poesia de infinitos transvias,
Todos partindo de tua enigmática Paso de los Toros,
Cruzando sem passaporte as fronteiras
De países e de espíritos
Todos sedentos de vida e de utopia.

Eu te recordo, Enrique
Amigo de cafés montevideanos
Onde nunca estivemos juntos.
Mas onde, eu sei, sempre estivemos
Conversando sobre a magia das palavras,
Divagando sobre Quixotes e amores felinianos,
Perdidos – eles e nós – no meio do mundo
Em Midland, Enrique... em Midland.



                                                        Martim César