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terça-feira, 1 de outubro de 2013

A liberdade tem valor, nunca tem preço. Martim César

(Para Enilton Grill)

Imagem: Torres García


E te chamaram de América...


Tu que dormias no anterior a tudo,
Na primavera dos tempos. Na infância do mundo.
Tu que eras presente eternamente continuado.
Terra embalada por sons naturais. Sinfonia perpétua.
Água esculpindo nas pedras o rumo dos rios,
Floresta soprando no vento o gérmen da vida.

Tu que eras palavra de mil bocas.
Grunhidos e sinais, latidos e canções.
Idiomas de gente e bicho. Tu que eras vegetal.
Folha sussurrando ao vento. Chuva respingando o chão.
Tu que não precisavas nome de terra, pois eras a própria terra.

Tu que antes eras pedra e árvore, areia e campo,
E entre eles eras água, líquido vital, rumoroso e puro,
Eras filete escorrendo da neve da montanha,
Eras a primeira gota derretida ao sol e a segunda gota,
E depois o córrego que cantou na linguagem das pedras
E que, mais abaixo, encontrou outro córrego,
E assim se tornou um riacho e que se juntou a outros
E que se tornou rio que, de afluente em afluente,
Foi crescendo, alargando margens, saciando bocas,
Até desembocar, ruidoso e imponente, no mar amplo
e insondável.

Rio que antes irrigou as selvas, campos e sertões,
E encharcou pântanos, e fecundou vales,
Sendo a fonte onde se saciariam animais e homens
E de onde nasceriam os vegetais que seriam domesticados
Para servirem de alimento e de ofício cotidiano,
E que, por fim, plantariam o homem em cada lugar.


Porque tu semearias os homens nestas imensidões,
Vindos de terras distantes, atravessando estreitos gelados,
Em tempos imemoriais, em sagas que não foram narradas,
Por serem anteriores a estas eras, a estes tempos,
Mas que foram tão reais que ainda estão em nossos gens,
Na adoração ao fogo, na sobrevivência ao frio,
No lobo renascido em cão, ainda hoje enterrando ossos,
Para um inverno que já não é igual,
Mas que sobrevive, implacável, em sua memória.

Os homens, que também viriam em barcos, desde o poente,
De lua em lua, de ilha em ilha, de geração em geração,
De fogueira em fogueira, vencendo ondas e penhascos,
Até alcançarem estas paragens de onde não mais sairiam.

E, assim, por milênios te cruzaram de norte a sul,
De oeste a leste, da cordilheira à pampa,
Da floresta ao deserto, dos médanos até o mar.
E se entrecruzaram, misturando seus sangues,
E enredaram suas mãos e seus pés feito raízes,
E pariram novos deuses da chuva e do trovão.

E foi só então que os sons começaram a te nomear,
Só então começaram a musicar teus nomes.

Porém não eras América ainda, e sim a terra.

Somente a terra, ainda sem nome, ou de muitos nomes,
Desde o mundo Alakaluf, no extremo sul,
Gelado e aquático, nevado e canoeiro.
Até o povo Inuit no extremo norte do mundo,
Também feito de gelo e de água, de nevascas e de vento,
Na brancura eterna dos confins deste hemisfério.

E entre esses dois lugares, nas distâncias abissais,
Sob as noites de infinitas estrelas e planetas,
Objetos misteriosos que se moviam sem parar,
Forjavam-se homens e mulheres, mulheres e homens,
Cada vez mais, noite após noite, vida após vida,
Para que um dia tivesses esse nome que agora escrevo,
Esse nome que veio de longe, de outros mares,
E que levamos como filhos que não puderam escolher
Com que palavra se reconheceriam, com que som,
E que não sabemos se nos cabe, mas que ouvimos
E que quando nos chamam, orgulhosos ou contrafeitos,

Jamais indiferentes, atendemos.

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