O
rei
Quando
Cirilo Bocaiúva resolveu auto-proclamar-se rei, quase todos caçoaram
dele. Outros - poucos, é bem verdade - mantiveram um constrangido
silêncio, talvez já desconfiando das possíveis conseqüências
daquela intempestiva atitude.’Onde se viu? – Gritaram uns – A
monarquia não vingou neste país e, agora, mais de um século
depois, vem um demente falar de realeza... Ora veja! Mas que coisa
mais sem fundamento! É só um louco solitário gritando coisas
disparatadas!’ Os outros, cautelosos, continuaram quietos. Em
silêncio ficaram, não por que o auto-proclamado rei estivesse louco
e, sim, por que haviam já se acostumado aos seus rompantes
costumeiros e, assim, já adivinhavam aonde chegaria tal propalada
coroação. De tempos em tempos lhe surgia uma nova vocação, uma
nova ideia genial, um novo caminho messiânico capaz de salvar quem
lhe quisesse seguir de todos os males presentes e futuros.
Obviamente, dizia ele, não lhe importava salvar a humanidade - que
esta era negligente e acéfala por natureza, asseverava - porém
salvaria àqueles privilegiados que conseguissem ver o mundo com os
olhos do conhecimento. Do seu conhecimento. Quem quisesse seguir
idealismos baratos, que não os seus, estavam - por algum desígnio
que não fazia muita questão de explicar – fadados ao fracasso.
Estrondoso fracasso. Não lhe criam? Pois que esperassem. O tempo,
sempre ele, haveria de lhe dar razão.
Impassível.
Indiferente à ignorância da plebe, e com todas as pompas que uma
fantasia de carnaval e que um pequeno séquito de incrédulos
cortesãos permitiram, coroou-se rei. Rei Julius I denominou-se.
Mitram Rasec, conhecido como ‘o turco’ (mas que, na verdade, era
árabe), seu mais ferrenho opositor, perguntou-lhe, com um sorriso de
indisfarçável ironia: ‘Julius, como Júlio César... o imperador?
Não!- Contestou - Júlio César, como o próprio nome já diz, era
César, ou seja, imperador. Eu ainda não tenho um império
conquistado e, portanto, sou apenas rei... por enquanto... por
enquanto...’
A
mudança começou a ocorrer, no princípio, lenta, gradual e, depois
, de forma vertiginosa, quando o rei concedeu, através de um édito,
os seus primeiros títulos de nobreza. Os seus seguidores foram
contemplados, conforme a fidelidade e a capacidade administrativa de
conduzir o reinado (esta aferida pela realeza, obviamente);
tornando-se barões, condes, viscondes, e até mesmo duques. Em uma
cerimônia que ocorria semanalmente nas dependências de um bar (que,
nesse ínterim, havia se transformado - ao menos para aqueles
frequentadores - em castelo) havia sempre um novo nobre recebendo o
seu título. Conde de Cacimbinhas, Barão das Pedras Brancas,
Visconde de Airosa Galvão, Duque do Cerro Chato e assim por diante.
Estes, enobrecidos, se antes acompanhavam sua majestade mais por ver
aonde iria chegar tal aventura, agora já se moldavam à nova
condição. Nos encontros já se cumprimentavam à maneira dos
nobres. ‘Como anda o senhor Conde de Pedras Altas? Não tão bem
quanto o senhor Duque do Arroio do Meio... não tão bem...’
Quando
os primeiros passaram a usar cartolas e roupas extravagantes para o
calor dos trópicos, já não causaram a estranheza que seria de se
esperar. Em breve o que parecia ser uma peça de teatro ou um
regresso a um passado distante, tornou-se corriqueiro. Automóveis
foram trocados por carruagens. Motoristas por cocheiros. Pombos foram
novamente amestrados para servirem de correios. Nos saraus, agora
redimidos, o minueto e a valsa passaram a serem tocados novamente. E
todos, ou quase todos, rendiam homenagens ao rei. Ao grande rei
Julius I. A paz e a alegria haviam regressado. Não mais se discutia
política. Afinal, não poderia haver oposição a um rei. Não mais
desvios de verbas. Não mais direita ou esquerda. Não mais eleições
conturbadas. Não mais... não mais...
A população,
plebeia como deve ser a população de um reinado, certa de que
aquele rei era uma espécie de messias, pois, afinal, os reis são
escolhidos por direito divino, gritava nas ruas: ‘Vida longa ao rei
Julius I... vida longa à família real’. Família, esclareça-se,
porque o rei, arvorando-se no seu legítimo direito, estava para se
casar com uma das aldeãs, a mais bela do seu reinado, a qual,
logicamente, não pôde recusar o nobre privilégio de ser rainha,
mesmo sabendo que o rei não deixaria de ter os agrados de várias
cortesãs e concubinas, como, aliás, cabe a todo rei que se preze.
Passado
algum tempo, incluindo nisso as bodas reais com todas as festividades
inerentes a uma festa de tal envergadura, ninguém mais se atrevia a
sequer discutir o advento da monarquia. Ninguém mais... exceto uma
pessoa: o turco, melhor dizendo árabe, Mitram Rasec. Mas seja por
ter ficado sozinho pregando que todos os outros eram lunáticos
seguindo um lunático-mor, seja por terem seus argumentos se tornado
repetitivos, já não havia quem lhe desse ouvidos. Quando ele
ensaiava a sua ladainha, algum nobre passante, fosse conde, barão ou
duque, contestava para os demais transeuntes:
- É só um louco solitário gritando coisas disparatadas!
No entanto,
depois de muito aguentar queixas recorrentes dos seus súditos contra
as ofensas morais e ao mau exemplo dado pelo insolente, o rei
resolveu adotar medidas drásticas. Instituiu a pena de morte por
enforcamento e o turco, aliás, árabe Mitram Racec foi o seu
primeiro usuário. Foi uma festa até maior que o próprio casamento
real. O verdugo foi um dos últimos amigos a abandonar as ideias
anti-realeza do infeliz turco, isto é árabe Mitram Racec. Aceitara
tal incumbência para provar a sua fidelidade ao soberano,
preservando, assim, o seu adorado pescoço. Carrocinhas de pipoca.
Cambistas vendendo os melhores lugares junto ao cadafalso. Faixas com
dizeres tais como: ‘Morte ao infiel’ ‘Estamos com o rei’ ‘
O rei é o nosso protetor’ e por aí afora. Cânticos organizados
tais como:’ Hei, Hei, Hei... Julius é o nosso rei’, e tantas
outras coisas tão comuns a tais festividades.
Os
detalhes que se seguiram não vêm muito ao caso serem contados.
Apenas é relevante dizer que o turco, leia-se árabe Mitram Rasec,
subiu ao cadafalso, a sentença real foi lida, os tambores soaram e
zás... a única cabeça contestadora do reinado de Julius I rolou
pelo empedrado feito uma bola de futebol. E a plebe, de fato, usou-a
como tal. Uma correria só.
O
rei, desde a posição privilegiada do segundo andar do botequim, ou
seja, do castelo, pensou para si: O tempo, meu incrédulo amigo,
afinal me deu razão. Touché!
Muitos anos
depois, um neto desse primeiro rei, após vencer diversas batalhas
contra aldeias adjacentes ao seu reino, sagrou-se imperador com o
pomposo nome de Julius César III. Infelizmente para ele,
aproveitando-se do enfraquecimento interno da corte (isto ocasionado
em muito pela ambição desmedida dos seus súditos), um plebeu
oriundo de uma seita chamada Confraria dos Céticos insuflou a
população contra o seu soberano. Esse líder insurgente era
descendente direto daquele agitador que fora o infeliz inaugurador da
forca real. Chamava-se Rebelc Rasec. Depois de uma revolução
sangrenta o castelo foi tomado e o imperador foi colocado no próprio
cadafalso que o seu avô criara. Dizem os que presenciaram a execução
que, na hora em que a guilhotina caía sobre o régio pescoço, um
louco fantasiado de bobo da corte, dando cambalhotas e jogando para o
alto e embaralhando o que parecia ser uma coroa, gritava para a
multidão:
-
Viva a anarquia! Abaixo o rei! Viva a anarquia!
Martim
César
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