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sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Um erro em bronze, é um erro eterno. Mário Quintana






A estátua

O louco deixa-que-eu-chuto parou em frente à estátua e, sem atentar para o respeito que aquela imagem deveria representar, sentou-se em seu pedestal. Arrumou a sua perna torta como pôde. Tirou, então, do bolso uma garrafa de cana e tomou um gole fazendo a careta costumeira. Com um gesto ofereceu a garrafa para o seu novo companheiro. No começo não gostara daquela intromissão em seus domínios, afinal, a praça era sua. Sua e dos pássaros; porém, com o tempo, fora se acostumando. Já os pássaros... esses, sim, não se acostumaram nunca: desde a inauguração, afastaram-se dali. Primeiro os colibris, depois as pombas e, por último, até mesmo os pardais. Os pardais que a tudo se adaptavam. Nem eles ficaram. Nenhunzinho. Talvez achando que estavam sendo vigiados, talvez por algum outro fenômeno que a sua mente simples não conseguia entender muito bem. Percebera, também, outra coisa: desde o dia da inauguração as crianças também foram rareando. Rareando... e um dia ocorreu de não voltarem mais. Isso o incomodou bastante, porque ele sempre gostara daquelas algazarras na sua praça. Gritos e correria. De vez em quando algum choro passageiro. Gostava disso. Só ficava um pouco chateado quando elas mangavam da sua perna: “Aí vem o deixa-que-eu-chuto... aí vem o pé-pé do deixa-que-eu-chuto” – gritavam. Aí ele tentava correr atrás delas... mas era só de brincadeira... ele gostava de crianças. Inclusive uma vez um grupo de meninos fez aquela gozação de mau gosto e - por azar - o menorzinho se enredou com o chinelo-de-dedos e caiu. Ele poderia ter agarrado o menino e, assim, dar-lhe uma lição. Mas qual? Ele não saberia o que fazer. Sabia xingar. De longe. Mas não era esse o caso... por isso parou de correr e esperou que o menininho levantasse e desse no pé. Aí, sim, xingou. Eles correndo e ele xingando. Nisso era bom. “Gurizada de uma figa”.

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Agora estava ali, sentado. Tomando cachaça e pensando que a praça ficara mais triste. Ele não gostava muito dos pássaros, mas agora concordava que eles faziam falta. Eram tão donos da praça quanto ele. Onde estariam? Perguntava em pensamento. Mas o pior mesmo era a história das crianças. Sentia falta até mesmo das gozações. Olhava para a perna e ficava lembrando: “Aí vem o deixa-que-eu-chuto... aí vem o pé-pé do deixa-que-eu-chuto”. Não!... Agora elas não vinham mais, e - como não vinham - não tinha a quem xingar; nem de quem correr atrás. Por isso aquela estátua se tornara a sua única companhia; ainda que ela, talvez, tenha sido a causa dessa sua solidão. Pensava isso porque notara que as crianças, invariavelmente, abriam o berreiro quando se defrontavam com a imagem. E não adiantava os pais tentarem fazê-los se acalmar. Só quando se afastavam é que cessavam a choradeira.
Tomou outro gole, secou os lábios com a manga esfarrapada da sua camisa xadrez, e, então, uma idéia lhe veio à cabeça. Sim... porque não pensara nisso antes? Claro! Era tão simples.
No dia seguinte o louco deixa-que-eu-chuto apareceu na praça principal de San Cervando. Não era tão bonita quanto a sua praça, porém lá estavam os pássaros. Centenas deles. Muitos. E estavam as crianças. Elas, ao lhe verem, gritaram: “Aí vem o deixa-que-eu-chuto... aí vem o pé-pé do deixa-que-eu-chuto”. Sentiu-se feliz. De uma felicidade infantil. Feliz como as crianças e os pássaros que antes habitavam a sua praça. Correu atrás de um grupo de pivetes... meio rindo, meio chorando. Correndo e xingando: “gurizada de uma figa... gurizada de uma figa”.
Ouviu ainda uma zombaria de um adulto engravatado que, desde a porta da prefeitura, olhava a cena:
  • Ô louco! Resolveste mudar de praça?
Sem parar de correr, o deixa-que-eu-chuto se virou e respondeu-lhe:
  • Sou louco sim, mas não sou burro.
E seguiu correndo.

Martim César


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