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segunda-feira, 14 de março de 2011

Não sou eu quem me navega, quem me navega é o 'bar'. Jadrix




A caverna

Era noite alta. Talvez a última, pensou. Havia se perdido dos outros e achar o caminho para a segurança da caverna era a sua única chance de sobrevivência.
Alta noite. Não era a primeira e muito menos seria a última. Rodar pela cidade, levantar o volume do rádio e escutar algo que acalmasse os fantasmas que sempre o acompanhavam. Depois chegar no bar de sempre. Beber o de sempre. Fazer o de sempre.
Arrepio. Todos os sentidos em alerta. O ruído de arbustos sendo amassados. A batida surda de patas no chão da floresta. Intuiu que eram seus próprios passos. Alívio. Nem tanto; aquele silêncio repentino não era um bom sinal. Começou a correr, mas não sabia em que direção.
Trânsito de sábado à noite. Sentidos voltados para os semáforos e o movimento das ruas. Muita gente, muitos carros, luzes muitas; mas a solidão parecia não se importar com isso e insistia em lhe acompanhar. Sabia que a necessidade de matar aquela sede que lhe secara os lábios, era mais da alma que do corpo.
Tinha sede. Pensava na caverna. No fogo acalmando aquela ardência de frio na sua pele. O fogo que há pouco aprendera a dominar. O raio que consumira a árvore; o atrevimento de um deles e a tocha conduzida até a caverna. Lembrou-se daquela noite em que expulsaram as sombras. Depois dela, as feras já não vieram mais. Temiam as chamas. Pensava no fogo, e corria.
Sirene. Homens correndo debaixo de um viaduto. Perigo na esquina. Um antigo instinto aflorou ao cismar que pareciam lobos. Não entendia o porquê, mas estava eriçado. Fechou os vidros e foi direto ao bar, pois tinha sede. Muita sede. A segurança de estar entre as pessoas o acalmou. Deu de ombros quando a solidão se sentou na cadeira em frente; faz tempo que se acostumara a isso.
Escutou os uivos. Nitidamente. Eles o haviam farejado, tinha certeza disso. Correu mais depressa. Já não se importava com o sangue que os galhos e espinhos lhe arrancavam. Os lobos pareciam cada vez mais próximos. Chegariam das sombras, hediondos, com seus dentes de terror. De repente, avistou a caverna. A chama ainda distante, porém acesa. Tremeluzindo. A proteção da fogueira. Os outros. No calor da mulher, pensou. Ainda sentia o suor dela misturado ao seu. Tinha que correr. Necessitava correr. Muito correr.
Antes não era a solidão que sentava ali. Mas isso fora há muito tempo atrás. Lembrou-se dos brindes. Dos sorrisos. Lembrou-se dela. Ela que quase o tirara desse labirinto. Lembrou-se que então a solidão acompanhava outros, ainda que de vez em quando olhasse na sua direção. Depois, mais confiante, foi fechando o cerco. Fitando-o de mesas cada vez mais próximas. Lembrou-se outra vez da mulher; com ela, quase conseguira alcançar o dia, os horários, a vida a dois; quase. Mas a atração da noite fora mais forte. Ímã. Gravidade impossível de vencer. Depois o tempo passara; noite sucedendo noite. Numa delas, quando a solidão por primeira vez pediu para sentar-se à sua frente, compreendeu que o labirinto já não tinha porta de saída.
Faltava pouco. Porém suspeitou que não alcançaria a caverna. Quase podia sentir o hálito quente das feras na sua nuca; as mandíbulas dilacerando a sua carne. Contudo, a caverna estava ali; bem à frente. Cruzou a clareira. Algumas pedras mais e chegaria até a segurança da fogueira. Finalmente divisou a porta. Agora bastava apenas cruzá-la. Então algo muito estranho aconteceu. Na penumbra, entrecortada pelas chamas, seus olhos divisaram uma imagem. Incompreensível. Não parecia a sua caverna, embora tivesse certeza que era. Muitas luzes. Muitos outros. Pedras que não pareciam pedras. Fogos que não pareciam fogos. Formas desconhecidas. E havia alguém que o encarava desde um canto. Alguém cujo rosto lhe parecia familiar. Vacilou, mas não havia tempo para pensar. Tinha que entrar. Não havia outra alternativa. Porém era tarde demais. Os lobos o alcançaram.
Madrugada. A solidão continuava ali; cada vez mais senhora de si. Já não pensava nessa companhia sempre tão fiel. Tampouco pensava na mulher. Nela que há tantos anos atrás quase o tirara daquele labirinto. Sabia agora, nunca houvera uma porta de saída. Era só de entrada, concluiu. Chamou o garçom; ele assentiu e foi até a cozinha. Não precisava pedir nada; ele já sabia. Muitos garçons passaram por ali; ele nunca passara. Ele e a sua companheira de mesa. Achava mesmo que sempre estivera ali; e mesmo quando mudava de bar, era como se sempre estivera ali. Ele e aqueles outros que sempre estavam, não importava o lugar. A noite sempre os encontrava. Pensou na frase que cunhara um dia, já nem se lembrava quando: “Os bares mudam, mas os boêmios são sempre os mesmos”. Sorriu. Um sorriso amargo. Oblíquo. Mais parecido a uma careta. As horas passaram. O mal maior era que, nos últimos anos, por mais que afogasse os náufragos da alma, o álcool já não fazia mais efeito. Conformado, pagou a conta. Chegou ao carro e, talvez por pirraça, abriu a porta do carona, fez uma mesura, e convidou a solidão para entrar. Ela agradeceu e entrou. Fechou a porta. Ouviu gritos ao longe; pareciam uivos. Como de lobos, pensou. Fez a volta no carro e olhou uma vez mais para o bar.
Na placa de néon, brilhando na escuridão da noite, havia um nome:
Caverna.







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