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terça-feira, 4 de setembro de 2012

Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga Levantai-vos, heróis do Novo Mundo! Andrada! arranca esse pendão dos ares! Colombo! fecha a porta dos teus mares! Castro Alves

 

Alforria


Peito nu, canela em sangue...
Só o canto das senzalas alivia um pouco a dor
Das feridas salgadas na carne negra.
O pranto vertido em suor em estranhas terras de além-mar,
As cicatrizes que por vezes ainda se abrem
Como que prenunciando a tormenta
De tempos em tempos, geração após geração...

Que silenciem as chibatas
E se acabem os algozes... para sempre!
Que nunca mais seja o teu sangue o alimento
Dessas aves de rapina em forma humana... para sempre!
Que não se distinga o homem do homem
A não ser pela sua bondade ou crueldade... para sempre!

Aí estão as cercas de pedra
E os casarões pelos campos,
Aí estão as cidades com suas construções centenárias...
Testemunhas caladas deste Sul cantado em versos.
Aí estão...
Mas o que guardam em si é muito mais do que mostram
Para o olhar dos turistas e passantes...
O que a história não diz,
- Talvez por pouca memória ou por pensado descaso -
É que cada pedra moldada, cada tijolo sentado
Tem o calo das tuas mãos, tem o sal do teu suor
Erguendo um novo país.

Aí estão as charqueadas...
Imponentes abatedouros de vidas e almas,
Que parecem tão mudas agora
Mas se pudessem falar
Contariam dos grilhões e das argolas
Dos ferros rompendo a carne de feras e de homens...
Da dor que prefere a morte
Mas que não tem direito a morrer.

Depois de tanto desterro
Já não recordava os dias
Em que os caçadores de homens chegaram.
Então, tocados como animais,
Pararam no oceano... no infame porto da Mina,
Ou em outros, tão infames quanto ele.
Isso... os que não morreram lutando,
Ao verem seus filhos mortos,
Ao verem seus pais trucidados,
Ao verem seu mundo acabado
Num grito de nunca mais!

Já não lembrava que nos portos,
- Feito gado arrebanhado -
Eram acorrentados e jogados nos tumbeiros
Rumo à travessia assassina
Que nenhum pesadelo é capaz de descrever.

Já nunca mais a mãe-áfrica,
Já nunca mais o seu lar,
Agora era em volta o mar,
O banzo, a peste e o naufrágio...

E por mil vezes foi assim
Em um crime quase sem fim
Sem nome, pena ou idade
Que manchou a humanidade
Com a maldição de Caim.

Depois, os teus ancestrais,
Não mais do que mortos-vivos,
Sobreviveram, cativos,
Mas sem perder a raiz...!
Pois nas noites largas do encerro,
Sem entender o destino de ter uma alma humana
Num corpo amaldiçoado só por ter mais pigmento,
Mirava com os olhos tristes o claro lume das velas,
E vendo escorrer por elas o sebo se derramando
Numa branca lágrima de dor,
Uma canção na lembrança
- Como um feitiço ou encanto -
Teimava em calar-lhe o pranto,
Feito quem olha no campo
Mil calêndulas em flor...

Assim resistiram teus orixás,
- Ainda que por trás dos santos! -
Teus batuques, teus quebrantos
Tuas ancestrais benzeduras...
Teus tambores ritmando a vida
E os teus rituais sagrados
Que jamais foram apagados
Ressoando na noite escura.

Negro, sim, com o gosto salgado do suor dos saladeiros,
Com o gosto doce do açúcar sangrado dos engenhos,
Com as mandingas e as rezas dos terreiros.
E seu dotô, não se esqueça
Da coragem dos guerreiros!
Oxalá nunca se esqueça!
De Zumbi, de Ganga-zumba...
Da epopéia dos Lanceiros...
Traídos pelos heróis que hoje estão pelos livros
Ou no altar, nas ruas, nas praças...
Generais, barões e condes...
Mas que na realidade não passam
De uma mentira no bronze.

Quinhentos anos de dor
A alforria não apaga...
Essa é a história!... essa é a saga...!
Que Castro Alves contou
E que não se esvai na memória...

Essa é a saga...! essa é a história...!
Que eu não esqueço aonde for,
Mas não transformo em lamento. 

Só assim vislumbro um tempo
Em que toda a humanidade
Entenda, enfim, que a igualdade
É bem maior do que um credo
E está além dos países...
E por ter infindos matizes
Não se resume a uma cor!!!




Alan Otto Redu/Martim César







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