Um avô chamado Darwin
Naquela manhã de milhões de anos atrás, em pleno coração
da África, um distante avô de Charles Darwin comprovou a teoria da evolução das
espécies, antes mesmo dela ter sido criada por seu famoso neto. Ao erguer-se
sobre as patas traseiras, provocou alguns efeitos não muito fáceis de analisar.
A faculdade de poder olhar para a infinidade do céu, que a partir de então o
tornaria diferente das demais espécies, daria origem à propensão humana de
questionar o universo que o cercava. Havia muitas perguntas para fazer; poucas
respostas para dar. Algumas explicações tardariam uma infinidade de gerações;
outras, talvez, jamais fossem respondidas. Esse pequeno gesto - que seria
repetido doravante sucessivamente a cada amanhecer - engendrou a mutação que o
faria dominar o minúsculo grão de areia que habitava, e que viria, posteriormente,
a ser chamado de Terra. Ao sustentar-se na vertical, percebeu a estranha
ociosidade dos membros dianteiros. As mãos estavam soltas no ar. Quando chegou
o meio dia, sol a pino, esse avô utilizou aquela nova condição para fabricar os
seus primeiros instrumentos. O seu cérebro, agora provocado, desafiado,
obrigado a dar função para as mãos, começou a crescer. Quando a tarde já estava
se aproximando do final e a sempre perigosa escuridão se acercava, aprendeu a
dominar o fogo. Chegou a noite e depois veio o dia e depois veio outro dia. E
outro dia depois do outro dia. Infinitamente. Assim, foi aperfeiçoando seus
instrumentos. Uma estranha necessidade de deixar um rastro para o futuro também
foi afastando esse ser dos demais. Pintou nas cavernas. Esculpiu na pedra e
moldou o barro. Dessa forma inventou a arte. Buscando a necessária
sobrevivência da espécie foi preciso ensinar o que aprendera aos seus
descendentes e, com isso, engendrou a cultura. Primeiro com os gestos, depois
com a palavra e mais adiante com a escrita. Depois nasceu outro dia e, embora fosse
igual aos dias que o antecederam, ele - o homem - já não era o mesmo. Carregava
consigo a bagagem de conhecimentos adquiridos em sucessivas gerações. E assim o
avô chegou ao neto, e os milhões de anos que os separavam não foram mais do que
os segundos que se leva ao lermos algumas palavras em uma folha de papel. Vidas
humanas cruzando como em uma corrida de revezamento. Os que chegaram antes:
ensinando; os que vieram depois: aprendendo. O avô tornou-se o neto e o neto
tornou-se o avô. Que é o avô de outro neto. E assim sucessivamente até chegar
aqui. Neste exato instante. Que agora já passou.
Martim César
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